TEIXEIRA, Anísio. Carta a Monteiro Lobato, [a bordo do Queen Elizabeth], 29 jan.1947.
Localização do documento: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 28.06.22.
Carta publicada no livro Conversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / CPDOC, 1986. p.104-107.

Janeiro, 29, 1947

Meu grande Lobato

Estou lhe escrevendo do Queen Elizabeth, de viagem para New York. Pouco antes de deixar Paris, recebi sua carta e posso lhe dizer que você, mais uma vez, determinou a direção da minha vida. Estava em pleno labor deliberativo a respeito do meu trabalho na UNESCO e, confesso, inclinado a me encaramujar na Bahia cuidando da criação de quatro Teixeirinhas. Sua carta sacudiu-me como uma rajada de vento e resolvi ficar. Esta viagem ainda é resultado do propósito de tudo abandonar. Era a minha viagem de volta: a primeira parte da viagem de volta. De New York tomaria um outro barco para a Bahia, sem querer passar pelo Rio. Não pude cancelá-la, mas, vou até New York. Volto dali para Paris e para a UNESCO. E tudo isto veio muito de sua carta. O seu entusiasmo me pegou. É espantoso que você em Buenos Aires veja a UNESCO melhor do que eu! Lendo e relendo a sua carta, comparo-a às cartas dos namorados sobre casamento. A vida conjugal, entretanto, é tão diferente! Dá-se um pouco o mesmo com a UNESCO. Amar a UNESCO é uma coisa e casar-se com ela outra. Com sete meses de vida marital, andava triste e desconsolado. Nada me fazia crer na UNESCO dos nossos sonhos. Vem você daí, de longe, e me diz tais coisas que não tenho jeito senão reconsiderar. Os sonhos não se realizam sem que primeiro se armem os andaimes. E uma construção em andaimes pede imaginação e amor para ser compreendida. Vou voltar à UNESCO para uma nova experiência e, no curso dessa experiência, conto com você em Paris.
A UNESCO é, ao mesmo tempo, uma obra tardia e uma obra prematura. É esta a sua contradição essencial. Tardia porque, de muito, o mundo pedia um centro intelectual para unificação de sua experiência e direção do seu progresso. A UNESCO devia ter começado a existir desde o dia em que Galileu revelou àqueles bobalhões medievais o método experimental. Criado o método científico, a UNESCO era uma necessidade, para aplicá-lo, para dirigir os resultados da sua aplicação à vida. Em vez da UNESCO, tivemos, porém, uma ciência e uma inteligência nacionais e nacionalistas até a apoplexia final hitleriana. Então, os homens acordaram para a UNESCO. Dentro do pesadelo da catástrofe revelaram-se generosos e lúcidos. Mas o pesadelo passou. O mundo sobreviveu à débâcle, graças a uma UNESCO improvisada na América com os cientistas de todo o mundo, uma UNESCO, que produziu o fogo atômico e armou o homem com o poder e... o dever de ser sábia e ajuizada. Era natural que essa UNESCO se constituísse devidamente e tomasse de vez a direção do progresso humano. O sonho dos Wells e Lobatos estaria realizado. O mundo teria afinal sua máquina de pensar. Mas... com a vitória - que ironia! - os homens voltaram às suas divisões antigas. E dentro dessas divisões a UNESCO, que pretenderam criar, é algo de terrivelmente prematuro. Os governos puseram-na para um lado e o Huxley para outro. Mando-lhe a introdução do Huxley à obra da UNESCO. É esplêndida, mas aquilo é pensamento pessoal do Huxley, e os homens dos governos, os que mandam, não o aprovaram. Consentiram na publicação como contribuição pessoal do Huxley e não do diretor-geral da UNESCO. Se Wells ainda estivesse vivo creio que estigmatizaria a pequenina UNESCO que estamos construindo.
Mas que quer você? São assim os homens e talvez só com a terceira catástrofe venham a aprender a viver uns com os outros. É horrível pensar estas coisas e ainda mais horrível cooperar em obras frustras. Chocar aqui na UNESCO o próximo cataclisma é o último dos meus desejos. A sua carta, entretanto, fez-me reconsiderar tudo isto. Vou ficar mais algum tempo. Pensar é uma coisa, realizar um pensamento outra. Nada exige tanta paciência e tanta "ciência do possível". Vou ver se não sou eu que estou errado com a minha impaciência wellsiana. E se você vem a Paris, juntos discutiremos tudo isto. A UNESCO está a constituir-se definitivamente. Os meus companheiros insistiram por que ficasse. O Huxley declarou-me que desejava muito conservar-me e sua carta acabou o trabalho. Deixo uma vida privada que começava a ser interessante e vou ser funcionário intelectual do que você chama o cérebro do mundo. Serei um pouco office-boy desse cérebro se ele chegar a ser mesmo cérebro. A minha posição na UNESCO é de conselheiro com o ordenado de aproximadamente duas mil libras. Isto, em França, reduz-se a 80 mil francos por mês, o que é muito pouco. Com o câmbio artificial da França sofro uma redução de 50% no meu salário. No Brasil, vendendo minhas máquinas teria muito mais. Pouco importa. Não quero decepcionar os que acreditam em mim e não quero também me decepcionar. Somos de um modo ou de outro, homens públicos e o nosso dever é s’engager. Je m’engage...
Em New York, para onde sigo com Emilinha, que veio encontrar-se comigo em Paris, vou estar com o Jaime a acertar os meus negócios da Bahia. Emilinha seguirá para o Brasil, para dali voltar com a meninada, e eu irei recomeçar, em Paris, a experiência internacional.
Se você estiver no propósito de vir, poderá fazê-lo logo, ou poderá esperar a Conferência Geral da UNESCO, em novembro ou dezembro no México - , juntos debateríamos a UNESCO e você viria comigo para Paris se a experiência ainda tivesse interesse... Este ano de 47 parece-me que será o ano de amadurecimento da crise do mundo. O tratado de paz com a Alemanha marcará se vamos ter nova guerra ou se progrediremos em paz, isto é, unesquianamente. 1946 foi um ano de incertezas e indecisões. Mas por isso mesmo, deixou os problemas em aberto. Vamos sentir melhor as direções em 1947. Por isto mesmo, precisávamos nos encontrar este ano.
Não quero terminar esta, sem uma palavra por esse Queen Elisabeth que representa tão bem tudo que já é possível e tudo que se não quer fazer. O vapor é um grande hotel flutuante. Tem 14 decks. Estou a escrever-lhe do 12º, que é um salão com seis ou sete metros de altura e de uma beleza e elegância que não vi ainda em nenhum hotel. Estou no vapor desde às três da tarde. São 10:30h e não vi ainda o mar. E não sei se o verei. Também nos bons hotéis não se olha para a rua. Deixei Londres coberta de neve, com 17º F. abaixo do ponto de congelamento. A temperatura aqui no Atlântico é a mesma, senão mais baixa. O vapor está porém com a mais agradável das temperaturas. O homenzinho que Galileu criou vence o mar, o frio e a distância. Do telefone que tenho em minha cabine posso falar com qualquer ponto da terra, como também conversar com qualquer pessoa do hotel que é o navio.
Tão fácil generalizar isto! Mas os governos - os homens aos quais está confiada a direção do mundo - são homens municipais e só pensam em seus municípios que são hoje suas nações...
Entretanto, estamos muito mais preparados do que pensamos para a nova escala mundial. Não há um só povo contente com a escala municipal. Na Inglaterra há juízo, há esforço, há plano - mas a população está apática. Na França - não há nada disto e a apatia se fez pândega. Na Alemanha e Itália - um um semidesespero, senão completo desespero. Na Rússia - não se sabe. Nos Estados Unidos - uma próspera inconsciência. Na China - a guerra civil. No Oriente Próximo - fermentam forças obscuras. Na Índia - um colosso, tenta erguer-se em meio à solércia hábil dos ingleses. Na América do Sul - peroniza-se ou preparam-se novas peronizações. Na Europa Central - ensaiam-se democracias à maneira sul-americana. Tudo isso pedia um plano de conjunto que despertasse as energias de uma fé e um esforço comuns. A "escala mundial" traria isto, estou certo. Wells morreu descrente e nós... Será que nós também vamos morrer sem poder crer no óbvio, no razoável, no evidente? Só o evidente parece ser realmente invisível!
Bem, Lobato, já bati muito o meu incoercível papo. Escreva-me. Preciso de suas cartas e ainda mais preciso de vê-lo. De New York lhe mandarei o meu endereço. Devo estar em Paris no fim do próximo mês.
Lembre-nos a d. Purezinha e a Rute e creia no seu de todo coração

Anísio

P. S. Quem sabe se você não poderia vir logo a Paris? Não há melhor ponto de observação e a França pode dar-nos as maiores surpresas.

 


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